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“Precisamos voltar a ritualizar as nossas vidas”

A carioca Mana Bernardes faz objetos que propõe uma nova experiência comportamental. Conheça sua primeira linha de móveis para a Tok Stok e leia a entrevista exclusiva

Por Cristina Bava
Atualizado em 3 mar 2017, 16h05 - Publicado em 30 out 2015, 13h37

Artista visual, designer, poeta, joalheira e multitalentos, Mana Bernades acaba de lançar sua primeira coleção de móveis para a Tok Stok. A linha Rito e Afeto vem carregadas de sensações e propõem uma relação mais poética com o nosso cotidiano.

1. Fale um pouco da pareceria com a Tok Stok. Está é a sua quarta linha para a marca?  

Foram duas coleções “Livro em Louças” e “Flutuantes” lançadas juntas em 2013. Agora lanço as coleções “Rito” e “Afeto” e alguns complementos das duas primeiras linhas. Na “Rito”, procuro falar da importância dos rituais. Acho que um dos nossos grandes problemas civilizatórios é atravessarmos a vida sem ritualizar. Comemos um sanduiche em pé, e esse é nosso almoço. Não ritualizamos nosso acordar, não ritualizamos o nosso dormir, nem o nosso comer. Esse é um problema civilizatório. Em toda a aldeia, seja uma aldeia indígena, seja uma aldeia de uma cidade pequena as pessoas tem um outro jeito de viver. Sei lá, toca o sino e as pessoas se levantam e olham para céu. Acho que estamos perdendo isso e perdemos muito com isso. De uma certa forma, os meus objetos tem um compromisso comportamental, que a partir da sensibilidade da textura e da poesia, e da poesia que não vem só das palavras mas também vem da forma e da pessoas sentir que aquilo foi projetado para ela se sensibilizar. Eu chamo essa linha de Rito pois espero que as pessoas possam ritualizar o seu dia a dia. Meus objetos tem esse objetivo de gerar uma experiência comportamental nova. Por exemplo: quando eu falo de uma fruteira que é um porta raízes, legumes e frutas que é um móvel eu estou dizendo: ‘ – se liga ai,  você não precisa guardar tudo na geladeira, as coisas tem seu tempo certo de amadurecer’.

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2. Como se deu a passagem das artes para moda e para o design? Como é ser uma artista multi plataforma com criações em diversas áreas? E como se dá o seu processo criativo?    

Essa passagem se dá todos os dias. Todos os dias eu ligo o botão da moda, desligo o botão da arte. Desligo o botão do que moda e ligo um botão do design. Mas a origem de tudo isso é a possibilidade de eu ampliar o significado das palavras. Ampliar o significado das palavras, essa é minha função como poeta e essa é maneira como eu amplio a minha poesia para o meio da moda, do design, das artes.

Minha primeira profissão, a minha origem, que é a de joalheira – coisa que eu faço desde criança. O maior sentido de fazer joias é ampliar o significado da palavra joia. Pois joia no dicionário é ligada a metais duros e pedras preciosas. E eu acredito que joia tem a ver com uma coisa de menor tamanho e de maior valor. E eu quero trabalhar com esse arquétipo de sensibilização que  joia traz. A partir dessa ideia de precioso, desse requinte que a joalheria traz é que constitui as bases para o meu trabalho. Estamos no século 21, um século que exige muita transformação e evolução, em relação aos materiais e aos processos, eu trago esse arquétipo da preciosidade das joias para a questão do desenvolvimento humano.  Desenvolvo joias feitas a partir de um processo afetivo com o mundo, com as pessoas, com as artesãs que fabricam essas joias, com os materiais que são oriundos do lixo, que vem de descartes industriais.

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Trouxe isso para uma frase que eu criei para as embalagens das joias: o poder de transformação é a joia de ser humano. Vejo o ser humano como uma joia. Não faço joia, trato o ser humano como joia.  E assim eu incluo uma outra quarta profissão que é atuar pelo desenvolvimento humano. Promovo o desenvolvimento humano e autoral, há mais de 12 anos pelo Brasil todo. Eu vou em comunidades, em favelas, em locais onde essas mulheres se encontram, ouvindo a história de vida de cada um dessas mulheres.

Brinco que tenho quatro profissões e agora estou indo para a quinta. Sou poeta, joalheira, trabalho desde 14 anos de idade, com desenvolvimento humano, sou designer e agora eu virei cozinheira. Resolvi fazer toda a comida para a Tok Sok.

3. É a primeira vez que você desenha móveis, as duas coleções anteriores eram de acessórios. Como foi essa experiência? E como compõe o mix de produtos.

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Sim, essa é a primeira vez que eu desenho móveis. Passei 2 anos desenvolvendo  essa coleção. Foi um desafio muito grande. Eu ainda me considero em processo, sou nova nesse meio, tenho muito para estudar e evoluir. Por isso, inda não projetei peças que tenham uma ergonomia muito complexa como uma cadeira. Fiz um estudo comportamental. Criei uma fruteira, um biombo, um caixa de madeira para guardar tesouros, caixas para guardar memórias, afetos. Existe o design, mas não existe o virtuosismo. Fiz um trabalho básico, seco, que procura atender a necessidades de um publico dentro de uma loja de departamentos.

A composição do mix de produtos acontece de duas formas: vem um pouco do meu desejo, do meu ímpeto, com o que vem da mina alma. E tem a ver, um pouco, com a demanda da própria Tok Stok. Eles me escrevem dizendo que precisam de um castiçal. E muitas vezes eu falo que preciso fazer um vaso de parede.

4Como suas reflexões tem se materializado em seu trabalho como designer?

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Acho que meu trabalho tem um cunho filosófico muito grande, não separo vida de trabalho. Não estou a fim de separar vida e trabalho. A minha vida e o meu trabalho são uma coisa só. Os índios não separam a vida do trabalho. Acho que temos que fazer do nosso trabalho uma celebração da nossa vida e fazer da nossa vida uma celebração do trabalho.

Eu me sinto missionária. Acho que eu tenho uma missão mesmo em desenvolver processos afetivos, amoroso, justos que causem uma economia criativa, que causem amor coletivo. Tenho isso, gosto disso e me faz bem. Meu trabalho passa muito pelas relações. Sou uma designer de processos e uma designer de relações.

5. Você vem de uma família de artistas. Como foi ter sido criada nesse caldeirão cultural?

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 As minhas influencias familiares só me ajudam. Tem uma coisa muito bonita na minha família: fui criada para ser livre. Sai de casa com 18 anos, sempre me sustentei desde nova. Minha família sempre presou a autonomia. Meu pai e minha mãe nos criaram para sermos autônomos e livres. Tivemos e, ainda tenho, uma troca filosófica muito grande. Não tem nada que eu tenha falado com eles, com meu pai (que já faleceu) e com a minha mãe, que eles não tenham expressado ideias mais modernas do que as minhas.  

Tenho um diálogo e uma troca poética com a minha mãe muito rica. As vezes ligo para ela as 6 horas da manhã: ‘- mãe, escute, veja o que você acha dessa palavra, me ajuda pois estou aqui compondo um texto’

A minha estrutura com meus pais vem do exercício de ser livre ao pensar as coisas, vem da dimensão mais aberta e afetiva. Tenho uma gratidão enorme por ter esses mestres na família e todo meu desenvolvimento autoral vem dessa relação. O que me atrapalhou um pouco foi a desestrutura dos artistas da família. Tive dificuldade nesse lugar mais formal de pai e de mãe Faltou o básico que todo mundo tem, que é talvez uma certa rigidez de horário, de disciplina, de ter uma relação mais “dengosinha”, de ter colinho. Sempre fui criada para ser solta, livre e trabalhadora. Tem lado bom, mas tem um lado que me fez falta. Fui buscar esse colinho com uma tia, com uma amiga.

6. Conte para nós como foi convier com alguns povos indígenas e como eles te influenciaram?

Eu sempre tive diversos índios se hospedando na nossa casa, povos de diversas nações. O meu avô, Mauricio Vinhas de Queiroz, era um antropólogo que morou com os índios Ticunas. Os Ticunas são uma nação muito grande, que estão do alto rio Solimões até a Colômbia. A minha mãe ainda trabalha com índios. Eu, com 7 anos de idade, tive uma experiência de viver por dois meses com meu pai entre os Pataxós, no sul da Bahia. Foi ali que eu me inspirei para o que eu sou. Aprendi ali a dimensão de criar a partir das potencialidades do entorno.  Vi ali essa beleza de dos índios constituírem todos os objetos que eles necessitam de uma maneira muito ritualizada. Eu trouxe todo esse legado para dentro de casa, trouxe para mim, para a minha vida. 

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