O icônico conjunto arquitetônico palco da CASACOR Pernambuco em 2022 e 2023 tem uma história que habita o imaginário dos pernambucanos. O Bairro do Recife – área inicial de ocupação da cidade – se constituiu em uma lingueta de terra que, com o passar dos anos, foi sendo aterrada e assumiu a configuração atual de ilha, ligada ao resto do Recife por quatro pontes. Em 1910, a região passou por um processo de mudança inspirado nas grandes metrópoles europeias, em especial Paris, com objetivo de modernizar o porto, trazer melhorias em condições de salubridade e operar uma reforma urbana. Cerca de 2/3 do bairro foram demolidos para abertura de grandes e largas avenidas – em sentido radial, partindo do Marco Zero – com edifícios ecléticos imponentes. Foi na esteira dessa modernização que surgiu o Chanteclair, cravado entre a Avenida Marquês de Olinda, as ruas Madre de Deus e Vigário Tenório e o Cais da Alfândega. O edifício, em estilo eclético, ocupa todo o quarteirão e, na verdade, reúne seis imóveis independentes, mas com único volume externo. Segundo o arquiteto Jorge Passos, é difícil precisar quando o Chanteclair surgiu na paisagem urbana. Imagens do final do século 19 não documentam sua existência. As primeiras que trazem o edifício datam dos anos 1930. “Acreditamos que o prédio tenha sido erguido por volta de 1920, tomando como referência outros edifícios próximos. Não há registro de quem o projetou. Assim como outros imóveis, o projeto deve ter vindo de fora e foi, apenas, executado aqui. Suas características indicam que ele foi pensado para uso misto, sendo o térreo e a sobreloja para fins comerciais e os outros dois pavimentos para uso residencial. Havia ainda uma pequena torre onde funcionava o telégrafo”, explica o arquiteto responsável pela revitalização da fachada do edifício, entre 2010 e 2012. Nestes primeiros anos, o edifício abrigou escritórios alfandegários, armazéns comerciais, bares e restaurantes na parte inferior e residências nos pisos superiores. É por volta dos anos 1940 que o conjunto Chanteclair passa por um redirecionamento de uso e, nesse momento, torna-se uma referência para a boemia do Recife. O bairro – em especial o Chanteclair – passou a atrair intelectuais, artistas, profissionais liberais, políticos e marinheiros, que frequentavam os agitados bares, boates e cabarés da área. Segundo o historiador Leonardo Dantas e Silva, foi nesse período que o prédio passou a ser conhecido como Chanteclair, devido a uma boate que existia no local batizada com esse nome que, no francês, significa “Canto Claro”. Entre 1940 e 1970, o prédio viveu seus tempos áureos, era local que reunia políticos, usineiros, intelectuais, artistas, onde se discutia temas importantes para o estado, se declamavam poesias, músicas eram compostas e executadas… Passaram por lá nomes como Antonio Maria, Ascenso Ferreira, Nelson Gonçalves e muitos outros. Quem frequentou o Chanteclair neste período lembra que havia um clima romântico, as prostitutas estavam sempre arrumadas e havia todo um jogo de sedução posto. “A zona era romântica, muita gente ia lá apenas para se encontrar”, destaca Jorge Passos, reproduzindo as histórias que ouviu de antigos frequentadores. Como era frequentado por muitos estrangeiros, houve casos de prostitutas que se casaram e deixaram a zona e o país, como Maria Matulão que casou-se com um holandês e, anos depois, voltou ao Recife já com os filhos criados. Muitas que não se casavam tinham suas despesas na pensão pagas por usineiros. Quando da passagem da Rainha da Inglaterra pelo Recife, em 1968, diz-se que a soberana avistou as prostitutas na janela do conjunto e achou que estavam ali para cumprimentá-la e homenageá-la e passou a acenar para elas. “As prostitutas do meu tempo, até os anos 60, não eram iguais às de hoje, não! Que andam de bunda de fora, de alpargatas ou de pé no chão. Elas andavam vestidas de longo, bom sapato e perfume francês. Só podiam descer da pensão a partir das nove horas da noite e ficar até às cinco da manhã, por determinação da polícia. Para ser prostituta tinha que ter gabarito!”, disse, em 2002, Fernando Ribeiro Pereira, último proprietário do bar Gambrinus, em entrevista ao jornalista Sidney Motta. O Bar e Restaurante Gambrinus é outro estabelecimento marcante que funcionou no edifício. Foi inaugurado em 1930 e ampliado em em 1945, por José Pereira da Silva, que passou o comando do estabelecimento para seu filho Fernando Ribeiro Pereira. O bar era ponto de encontro da boemia que antes de subir para as boates dos andares superiores fazia um esquenta no bar, que funcionou até 2000, quando foi fechado para que a reforma do edifício pudesse ser iniciada. O artista plástico Paulo Bruscky era um assíduo frequentador do Chanteclair. Segundo ele, a noite começava no Gambrinus e depois, numa escada ao lado, subia para a boate. Toda a sua geração frequentou a zona. Naquela época, o Bairro do Recife era o coração boêmio da cidade, existiam bares famosos como o Bar do Grego, que recebeu uma exposição na boate com a participação de diversos artistas, em 1973. O jornalista Marco Polo Guimarães também atesta o clima de flerte e a etiqueta do Chanteclair. “Era diferente. Tinha flerte, tinha dança, muita gente estava ali para curtir a noite mesmo”, diz. Ele lembra mais um caso inusitado protagonizado por artistas. Certa feita, o artista Ypiranga promoveu uma ação artística na qual instalou um manequim no chão, coberto por jornais e lençol, com tinta vermelha simulando sangue. A polícia chegou a ser chamada e recolheu o “corpo” – uma grande confusão. Já no fim da década de 1970, o bairro começou a entrar em decadência. Com o passar dos anos o local ficou cada vez mais abandonado. As condições do prédio estavam bastante precárias e trazia riscos. As prostitutas que ali moravam tiveram que começar a deixá-lo. Mesmo com os pisos superiores fechados, o Gambrinus e os outros estabelecimentos comerciais instalados no térreo continuaram sua operação, ainda que de modo precário. O restaurante só fechou as portas no ano 2000. O arquiteto Jorge Passos lembra que quando era estudante de Arquitetura fez uma visita de campo à Igreja Madre de Deus, situada ao lado do Chanteclair, que estava sendo restaurada após o incêndio de 1971. “Quando chegamos lá, era início dos anos 80, vimos as prostitutas nas janelas. Lembro de pensar porque elas não eram chamadas para ajudar no processo. Em 1988, já arquiteto, fui convidado para executar um restauro no módulo do conjunto que dá para a rua Madre de Deus. Convidamos, naquela ocasião, as prostitutas que ainda estavam por lá para nos ajudar fazendo a decapagem das esquadrias. Essa obra foi logo paralisada. Nós só retornaríamos nos anos 2000”, conta Passos. Foi apenas em 1998 que o estigmatizado prédio em estilo eclético foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e começaram as discussões sobre um grande restauro e a proposição de novos usos. Só em 2010, Jorge Passos e sua equipe voltaram ao edifício e retomaram as obras, que incluíram toda a fachada externa do conjunto e a sua coberta. O processo foi finalizado dentro do prazo, em 2012. Foram catalogados 733 ornamentos integrados, e 2500 m2 de ornamentos aplicados, 106 janelas, 130 portas, 1.180 ferrolhos, 2.622 dobradiças e 57 grades de ferro fundido. O restauro foi possível graças ao estudo inicial realizado no início dos anos 2000 e do material guardado naquela ocasião que serviu como base para todo o processo. Desde então, mesmo com sua fachada totalmente recuperada há 10 anos, o prédio continuou fechado e sem uso durante todo esse período.
Para a realização da CASACOR Pernambuco 2022 e 2023 no Chanteclair, a gestão da mostra contou com a parceria da Prefeitura da Cidade, que integrou a reabertura do Chanteclair, nas ações do Recentro – plano de manutenção, de cuidado, e de revitalização para o centro da cidade. “A Prefeitura chega junto, abraçando, apoiando a realização de mais uma edição da CASACOR Pernambuco, entendendo que essa é um política fundamental do Recentro, ativar os imóveis desocupados e atrair as pessoas para revisitar, reviver, o nosso Centro Histórico”, explica Ana Paula Vilaça, secretária do Chefe de Gabinete da prefeitura. “Nada mais incrível do que estar presente num imóvel de tamanha importância, no coração do Recife, que é o Chanteclair”, finaliza Gabriela Coutinho. Serviço - CASACOR Pernambuco 2023
Onde: Edifício Chanteclair - Av. Marqueês de Olinda, 286 / Recife Antigo - Pernambuco Quando: de 22 de setembro a 5 de novembro de 2023 Horário de funcionamento : de terça a sexta-feira, das 15h às 22h. Sábados e feriados, das 12h às 22h. Domingo, das 12h às 21h Bilheteria digital: https://appcasacor.com.br/events/pernambuco-2023/tickets Valores totais dos ingressos: R$ 80,00 (inteira) e R$ 40,00 (meia para estudante, professor, PCD, pessoas com autismo e com 60 anos ou mais mediante documento). Crianças até 12 anos não pagam. Obrigatória a apresentação de documento comprobatório.